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Vamos Cirandar (1972) e Lia de Itamaracá – Ciranda sem Fim (2019).

 

Gosto de colecionar discos e ler resenhas sobre os mesmos e percebi o quanto é relativamente difícil encontrar resenhas de discos da cultura popular. Lembro quando conheci pela primeira vez um blog dedicado ao acervo de discos em Lp de música Afro Brasileira, Capoeira, Umbanda, Candomblé e assim por diante. Fiquei muito entusiasmado e me trouxe muito conhecimento, aliás foi até um incentivo na época para que eu adentrasse na Capoeira: https://acervotambor.blogspot.com/.

Com essa relativa falta de resenhas sobre discos da cultura popular resolvi falar aqui de dois Lps que adquiri: um é Vamos Cirandar (1972), que é uma coletânea de Cirandas autênticas de Pernambuco e outro, de 2019, lançado pela Três Selos, que é Lia de Itamaracá – Ciranda sem Fim. É difícil falar desses dois discos sem falar de Pernambuco e da Paraíba, dois celeiros da Ciranda no litoral nordestino, o mar, as lavadeiras, as pescas e os canaviais, esse cenário paradisíaco, mas também marcado pelo período escravista está presente na Ciranda, onde a vadiação, o momento de descontração após um dia pesado de trabalho a caracteriza.

 

O disco conta com três grupos de Ciranda: Baracho, Imperial e Cobiçada que vão se revezando pelos lados do Lp. O que gostaria de destacar nesse disco é, além da qualidade da gravação, os temas das músicas, que destacam Olinda, muitas referências ao mar, que também existe em Lia, outros temas que falam sobre amor e inclusive citação a Paraíba, João Pessoa e a praia de Tambaú, também referências a lavadeiras e a profissão da Pesca, ou seja, um círculo entre trabalho, cotidiano e vadiação. Lia também é louvada na clássica “Esta ciranda quem me deu foi Lia” (Baracho). Destaco também os seguintes e belos versos: ...Ela lavou na folha da cana de cana caiana do canaviá em “Lavadeira” (Geraldo Barbosa). Ao ouvir as Cirandas deste LP os pensamentos sobre o mar e a noite são muito recorrentes, pelo menos para mim e também o pensamento sobre a vadiação e a diversão das frescas noites do nordeste. Outro verso que destaco é para “Baralho de ouro” (José Gonçalves Ramos) Mandei fazer baralho de ouro, oh benzinho é pra nós dois jogar, mas se eu ganhar eu dou-te um beijinho, mas se eu perder é você quem me dá. Muitos desses versos podemos encontrar de maneira semelhante ou igual em outras tradições afro-brasileiras.

O disco falando sobre Pernambuco, Olinda, Recife e depois a sequência segue com a visita a Paraíba, como já citado e terminando com a despedida tradicional e também presente no disco de Lia. Na contracapa possui um pequeno texto de Aldemar Paiva e a Produção é de Nelson Ferreira, Técnico de Som Hercíclio Bastos, Layout Walderes Soares e Fotografia Wladmir Barbosa. Recomendo bastante à aquisição para quem gosta de cultura popular, é um grande registro e o melhor. Bem baratinho em sebos e lojas.

Achei essa pequena resenha bem legal do China, falando um pouco do LP também; não procurei tão extensivamente sobre relatos anteriores ou estudos acadêmicos, mas falar mais das minhas impressões, nos próprios comentários desse vídeo é possível obter interessantes informações adicionais:

https://www.youtube.com/watch?v=3_1pmX0FPxI

Já o disco de Lia tem uma capa extraordinária, que para mim é disparada uma das capas de disco mais bonitas que já vi. Quem a fez foi Celso Hartkopf, mas esse é só o primeiro elemento extraordinário, o segundo é a direção e produção musical de Dj Dolores, que já conhecia sem saber na obra da banda de Olinda Eddie, bem, só falando isso, pra que não ouviu mas conhece essas referências já dá pra imaginar. O projeto gráfico da Três Selos é incrível para o encarte e qualidade do material.

 

Vamos às músicas! Eu não conseguiria destacar músicas específicas, visto que esse disco ao todo é um espetáculo. Vi o show de Lia pela primeira vez e acho um absurdo ter demorado tanto, no início de 2020, em Natal RN, no projeto dos shows de Carnaval. Logo achei incrível a presença de palco dela e os boleros que a mesma cantou com Carlos Zens, flautista local e traz nesse LP, músicas românticas bem diferentes da Ciranda, que óbvio, também está presente no disco. Quando encontrei Carlos Zens, tocando chorinho no centro de Natal, perguntei sobre as músicas que ele cantou e tocou com Lia e ele relatou serem toadas. O próprio encarte traz uma resenha de Dj Dolores onde fala da lembrança que essas “modinhas” trazia para Lia, seu namoro e juventude. São lindas por sinal, detalhe que, ao ouvir, em casa, minha Vó as reconheceu. São várias músicas belíssimas interpretadas pela mesma e a Ciranda final leva também seu nome na autoria, DJ Dolores e Chico César também aparecem nas autorias. Particularmente, fiz muita questão de ter esta obra em minhas mãos e pra quem curte Lia, cultura popular, vinil e cultura afro-brasileira de uma maneira geral vale muito à pena adquirir, se não quiser em LP, em cd também é possível adquirir essa obra monumental.

Outro relato interessante é que a primeira vez que eu estava na praia, bebendo algumas cervejas com parentes e coloquei no som as primeiras músicas pelo youtube uns primos que estavam comigo, pequenos, se divertiram muito com as letras, a primeira, por exemplo “Falta de Silêncio” (Alessandra Leão) os fez rirem e repetir a letra, como se já conhecessem aquela poesia. Esse foi um fator muito interessante e que me fez ter mais vontade de me aprofundar nesse disco por essa força que ele causou nas crianças, que mostra muito esse fator “infantil” da Ciranda; além da força espiritual, simbólica e da arte da capa, para reforçar. As guitarras e percussões dão um show à parte.

Viva a Ciranda!!!

 

 

 

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