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Memórias de Mestre Mulatinho: da Roça à Capoeira e ao Candomblé de Angola.



Mestre Mulatinho, como é conhecido na capoeiragem hoje, mora no Rio de Janeiro, no bairro tradicional de Padre Miguel e é um dos nordestinos que migraram para lá em busca de uma vida melhor e se estabeleceu até hoje com o seu trabalho de Capoeira na periferia, lugar que não nega e vem empreendendo seu trabalho e o seu ponto de vista dentro da capoeira, tem suas opiniões, preza por elas segue em frente resistindo na grande Capital que possui um histórico de peso dentro da tradição da vadiação. Aqui o Mestre expõe um pouco de sua vida, desde o início no interior do Nordeste paraibano, até a sua ida para o Rio e as memórias sobre seus pais e os usos que faziam das ervas, uso esse que ele não deixou de fazer dentro do Candomblé de angola, onde hoje é pai de santo.
Minha Avó era Índia, Índia fechada, capturada por cachorro, a dente de cachorro, né? Em contrapartida meu pai não gostava de se tratar com medicina tradicional, ele gostava mesmo de mato e também tem a origem da minha religião, que sou do Candomblé, do Candomblé de Angola. Sou um zelador de santo do Candomblé de Angola e não tenho casa aberta, mas sou praticante há 21 anos e a gente se trata com as folhas lá, toma banho. É isso, além de indígena eu sou do Candomblé de Angola, zelador já com cargo, mas não tenho casa aberta.
Sou de Mulungu, só nascido em Guarabira que Mulungu não tem hospital. Desde novo vi meus pais se tratar com ervas, Quixaba, Bonômia, eles botavam aquilo na água e a água ficava vermelha, que a gente se machucava, meu pai foi cortador de lenha a vida inteira, cortava toco, arranca toco, inclusive profissão essa que eu tenho também, não é muito de meu agrado não, mas foi o que eu tive, e aí eu vi ele se tratar assim, meu pai né, seu Severino Valdevino, mas conhecido como Biu Valdevino; sou filho de Severino Valdevino e Marisa Maria da Conceição, ambos falecidos, minha mãe fez um ano agora em dezembro, e meu pai botava isso na água pra tomar, quando sentia dor, Quixaba, que é uma... Dá umas torceira grande assim, cada um espinho maior do que... A madeira é retinha, mas tem muito espinho. E ela tem um leite, quando ele cortava pingava aquilo, botava na cachaça pra beber, usava pra beber, pra botar na cachaça, Quixaba, Bonômia, Angico e por aí vai. Então ele botava na água, botava na cachaça pra beber, quando a gente ia pescar ele deixava a garrafa em casa pra ele beber, devia tomar uma dosezinha quando ele chegava do trabalho e ele usava pra isso. Aí quando ele tinha dor de dente ele usava Samburaia da Abelha, o que é que é? Quando você tira espreme ela (a colmeia) fica aquele bolo, fica preto, ele chamava aquilo de Samburaia, ele misturava aquilo com fumo de rolo, fazia o cigarro, botava no cachimbo e fumava, falava que passava dor de dente. Meu pai.
Minha mãe tomou vários chás, fazia muito lambedor, que vocês chamam de Xarope na minha terra é Lambedor. Bonôme, minha mãe fazia de Hortelã pastilha; uma hortelã que tem lá, aquele hortelã que bota na comida. Hortelã da folha grossa, fazia de Flor de Sabugo, fazia Lambedor com Flor de Sabugo, minha mãe fazia Lambedor de muitas coisas, muito chá de Colônia, de Hortelã pra gente tomar de manhã, Erva Cidreira, de Capim Santo. Isso era o que minha mãe fazia e minha Vó também tomava muita erva, comia Banana de manhã, banana com Alho, dizia que era bom pra verme.
E a minha Vó Damiana, que era mãe do meu pai e tia da minha mãe, que meus pais eram primos, minha família é uma confusão só, ela comia banana de manhã, fazia muito chá e quando ela tava com dor de ouvido pegava aquela erva Macassar, é aí do nordeste, é da Paraíba, aqui tem mas é outro nome, espremia dentro do ouvido aquela erva lá e era bom, se cuidava né, e tomava aquilo tudo e de manhã minha mãe tinha o costume de pegar Ava Moura, é uma plantinha que bota umas bolinhas verde que quando tá madura fica rocha, amassava aquilo e botava pra gente tomar com leite pra verme, Mastruz também, batia o Mastruz com Leite pra gente tomar pra verme, tudo isso fazia, naquele tempo tinha essa essas coisas, se tomava pra verme, isso era de manhã cedo tipo cinco e meia da manhã e não tinha liquidificador em casa não, batia no pilão, socava no pilão de madeira que tinha lá em casa, e por aí ía, era uma coisa muito legal porque a gente se cuidava assim. Desde lá que a minha mãe sempre foi muito doente e a gente sempre foi muito a médico também, mas tudo que o pessoal ensinava “é bom pra isso”! Que ela tinha um problema muito sério, uma dor do lado da barriga que nunca passava, que essa dor quem curou depois foi uma rezadeira, uma juremeira que rezou ela e ela ficou boa, depois de muitos anos, mais de trinta anos ela com esse problema que pra dormir tinha que botar um travesseiro em baixo da barriga pra poder conseguir dormir, uma vizinha nossa lá Dona Severina, juremeira.
Por aí vai, né! Eu lembro que eu me machuquei uma vez que não sarava de forma alguma, na canela que até tem a cicatriz, que caí no meio fio, coisa de moleque aprontando, e aí pra ficar bom ensinaram pra ela Aroeira. A casca da Aroeira ela torrou e fez um pó, aquele pozinho ela botava em cima desse machucado, foi com isso que sarou meu machucado. Aroreira quanto a casca quanto a folha tudo é bom pra remédio, tudo é bom pra remédio, a casca, a folha, bota na água pra tomar, entendeu? Pra lavar a ferida, pra fazer banho de assento, né? A mulher quando tá com problema, com escorrimento, é muito bom a Aroeira e era isso, Caju roxo, pra tomar, pra lavar o machucado, tudo isso era usado naquele tempo lá pela minha família. Minha família tradicional de cidade pequena que é bem dizer roça, por aí vai, que vai adquirindo os conhecimentos.
O Candomblé
Então, quando eu entro pro Candomblé, isso há vinte e um anos atrás, né e hoje já tenho o cargo de Zelador de Santo, né? Não tenho casa aberta, continuo na mesma casa que eu comecei. Sou feito numa casa de Angola, numa casa de Elizabete Oyáginguê, mais conhecida como Mãe Betinha, tem um barracão aqui em Magé, chegando na cidade de Magé, um interiorzinho da cidade, mora lá há quase setenta anos, ela tem setenta e dois anos de santo e tem uma história dentro do Candomblé muito bonita, muito forte e é isso. Eu sou de lá e aprendi muita coisa, a fazer os banhos de descarrego, com as ervas Vence demanda, Abre caminho, Levante, Quebra mandinga, Aroeira, Erva da oxum, Espada de São Jorge, Abranda fogo, Para raio, Arruda, Guiné. E por aí vai diversas e várias ervas, Manjericão, Manjericão roxo, Manjericão Roxo, Peão Roxo, pra gente fazer os banhos pra descarrego pra abrir caminho, banho pra levantar a pessoa mesmo que tá caída; quebra mandinga pra quebrar uma coisa que a pessoa tem e por aí vai! Eu aprendi essas coisas e tô aprendendo até hoje, que eu não sei de nada ainda. Tenho vinte e um anos de santo, todo dia pra mim é um aprendizado, todo dia tô aprendendo alguma coisa. E ervas pra tomar, Arnica que é o anti-inflamatório pra tomar natural, tem Arnica que é pra fazer banho e tem a outra que serve pra fazer chá, bater, bater ela pra botar num vinho branco pra ficar tomando, ou bater pra botar na água, deixar secar, fazer o pó, botar na água pra beber, por aí vai! É um anti-inflamatório natural, assim como a Mostarda também. E o tempo vai ensinando e agente e a gente vai melhorando, porque ninguém sabe tudo e ninguém nasceu sabendo tudo. É uma base, pouco a pouco a gente vai chegando lá!  É de pouco a pouco, o caminho é vagaroso. E a minha família é assim, eu e a minha família espiritual, e tem muita coisa, as garrafadas que os Pretos velhos fazem, as rezas com ervas. Reza com as ervas, gostam muito de rezar com Arruda, com Manjericão, folha de Peão roxo; folha de peão roxo, minha vó era rezadeira, me rezava aí na Paraíba, mãe do meu pai, minha avó Damiana, a mãe da minha mãe eu não conheci muito, era muito criança quando ela morreu e é isso. O processo é devagarinho, tem muita coisa na minha cabeça, só que eu vou lembrando e vou passando aqui aos poucos.
Podemos perceber com isso que a tradição religiosa do Candomblé preserva as tradições e ciências populares da classe operária e pequenos camponeses pobres, com isso a Capoeira Angola, o Interior nordestino e o Candomblé, se unem em uma tríade que termina nas periferias cariocas, trajeto do catimbozeiro Zé Pilintra? Quem sabe... São saberes e memórias das trajetórias desses grandiosos mestres dos saberes populares e tradicionais que devem ser preservados, mantidos e refletidos por nós (angoleirxs), de dentro para fora, da classe operária e fruto da diáspora, pois como afirma a quadra: “Eu sou livre como o vento, a minha linguagem é nobre, nasci dentro da grandeza, não saí da raça pobre”. Mestre Mulatinho também lê, preserva sua biblioteca sobre Capoeira e temas sociais e se preocupa com a leitura e estudo bibliográfico, no texto tentamos manter as palavra como foram ditas, sem muitas alterações. Pela igualdade dos saberes, econômicas e sociais, pela vida de nossos ancestrais. Salve Mestre Mulatinho!

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